O indivíduo lírico de Gessinger em Guardas da fronteira
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Quando Jesus voltar e o mundo “se acabar”, será um belo dia, e portanto, o verdadeiro cristão, o leitor passivo dessa fé, terá um bom lugar, ao lado do bom pai. Mas, pra acalmá-lo logo após, ela dá um breve gole fugaz de ansiedade, com o porvir de uma vida fadada ao dinheiro duvidoso da sorte, ao dizer sequências pontuais de números que alimentam uma roda a girar, todo ‘santo’ dia. Adorno e Horkheimer foram proféticos com a indústria cultural.
Este ser, julgado como essência pela caixa falante, ouve o discurso religioso - antes de jogar o vaso nela - de que há salvação após a morte, e lá todos serão julgados pelos seus pecados, tendo a possibilidade do céu (belo dia) ou condenação eterna. Este início, no auge de uma programação ansiosa, durante a sua transição para a tentativa de resistência, é justamente a afirmação de que a igreja contém o discurso de que a essência precede a existência e, portanto, o homem deve reconhecer sua natureza, e portanto, se conformar com ela (porque a vida é assim mesmo).
Seguindo nessa transição - quando ele joga a própria tv pela janela -, começa-se a seguir conselhos existencialistas de que a “existência é quem precede a essência”. Porém, essa contradição se revela como um ponto ainda em formação, visto por meio da culpabilização à Sartre pela sua própria aposta em ser honesto e imparável. Ora, abriu-se um outro problema, onde ele se reconhece sem opções e se vê obrigado em aceitar a dita liberdade, mas culpa alguém por isso, na tentativa de parar sua angústia, agindo com má-fé. Uma conduta inautêntica - culpa do Sartre!
Real ou não, é uma conduta louvável, na tentativa de derrubar os guardas e quebrar esses muros, mesmo sabendo que uma hora cabeças vão rolar. Ele, já chapado com a própria realidade, quer, em desespero, se revoltar contra alguma coisa. Mas quem? Como? Quem é esse mito que limita o infinito, as ideias, a fantasia, a arte e que torna todo mundo em coisa-objeto, em sujeitos heterônomos, em máquinas desejantes deleuzianas? Quem é aquele que nos coloca em redomas de concreto árido, que cria inspirações de necessidades supérfluas de querer e consumo, e no final do dia, fortifica a ideia de que estamos bem protegidos se ficarmos quietos?
Como disse, é grandioso exteriorizar sentimentos críticos através do conteúdo da cultura de massa, como fez o eu lírico. Ele releu a antiga tragédia grega a partir de uma mímeses televisiva, transformando o ato de se objetificar em processo crítico a partir da dialética rebelde. Seria ele um Dândi revoltado, em transformação para um Flâneur? Adorno aplaudiria!
Somente, então, a purgação aristotélica pela tragédia - com efeito ético-político - mudará esse status quo?
O problema é que esses guardiões subverteram a catarse grega, elevando o sentimento individual de que o lazer se presta a uma busca egocêntrica, sem interações nem mediações políticas ou cognitivas, mas pela aproximação simbólica entre os consumidores que compõem o espaço ocupado. Um breve gole fictício (e narcisista) de retomada do Eu infantil, reprimido pelo mito do seu próprio cotidiano, que esvaziou sua fantasia há muito tempo.
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Resgate do narcisista primário freudiano: a figura de um amante exagerado de si próprio.
Roger Waters no Brasil - 2018.
Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro, e liga as máquinas. Há por todo o lado máquinas produtoras ou desejantes, máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, já nada querem dizer (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.8).
Reflexões sobre a letra da música Guardas da Fronteira - Engenheiros do Hawaii (1987).
Antes de atirar o vaso na tv
Eu ouvi o que ela dizia
Quando não houver mais amanhã
Será um belo dia
Estranha coisa pra se dizer
Antes de dizer os números da loteria
Mas é assim que eles fazem
E fazem muito bem
E nós não fazemos nada, nada, nada
Nada além
Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Dos guardas da fronteira
Além do mito que limita o infinito
E da cegueira
Dos guardas da fronteira
Antes de atirar minha tv pela janela
Eu ouvi o que ela dizia
Quando não houver mais ninguém
Será um belo dia
Estranha coisa pra se dizer
Antes de vender mais mercadoria
Mas é assim o mundo que nos cerca
Nos cerca muito bem
E as crises e cicatrizes
Não nos deixam ir além
Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Das barreiras das fronteiras
Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Das barreiras das fronteiras
Das barreiras das fronteiras
Foi então que eu resolvi jogar
As cartas na mesa e o vaso pela janela
Só pra ver o que acontece na vida
Quando alguém faz o que quer com ela
Acontece que eu não tenho escolha
Por isso mesmo é que eu sou livre
Não sou eu o mentiroso
Foi Sartre quem escreveu o livro
Não sou afim de violência
Mas paciência tem limite
Além do mito que limita o infinito
Além do dia-a-dia
Que esvazia a fantasia
Além do mito que limita o infinito
Além do dia-a-dia
Que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
É que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
Ah, que esvazia a fantasia
Esvazia a fantasia
Ah, que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
Ah, que esvazia a fantasia
Esvazia, esvazia a fantasia