Marllus
Marllus Cientista da computação, mestre em políticas públicas, professor, poeta, escritor, artista digital e aspirante a tudo que lhe der na telha.

O fazer científico como prática militante

O fazer científico como prática militante
A ciência sob o capô da arte. Artista TriX

A ciência sempre sofreu mutações ao longo da história, tanto em abordagens mais fortemente epistemológicas (e por sua vez mais abstratas) - indução, dedução, hipotético-dedutivo, fenomenologia… - quanto por aspectos mais técnicos da investigação (menos abstratos), tais como o método histórico, comparativo, etnográfico, estatístico, estruturalista…

Percebo, contudo, especificamente nas ciências sociais, uma tentativa dos pesquisadores de alucinar análises nos seus estudos, em um claro militar científico sobre determinada causa. Como se quisessem levar ao limite o conceito de análise qualitativa - método que por si só dá ao mesmo a prerrogativa de ser mais interpretativista/subjetivo. Isso me lembrou uma discussão já iniciada na academia, no início deste século.

Ruth Cardoso explicitou:

Está na hora de retomar a questão inicial deste trabalho: a ênfase no papel militante do pesquisador e o abandono da reflexão teórica sobre os caminhos da observação participante. A defesa do engajamento político e a demonstração de que o conhecimento não pode se libertar de uma certa dose de ideologia colocaram quase como uma exigência a definição do pesquisador como um aliado dos grupos e minorias discriminadas, que também foram priorizados como objeto de estudo. Entretanto, esta intensificação da participação foi justificada por razões políticas e não pensada como instrumento do conhecimento.

E então, Mirian Goldenberg:

Ruth Cardoso apontou para a falta de uma crítica teórico-metodológica consistente no campo das ciências sociais e para algumas das armadilhas e limitações das pesquisas qualitativas. A autora descreve um “indisfarçado pragmatismo (muitas vezes confundido com politização)” que dominou as ciências sociais contemporâneas e desqualificou o debate sobre os compromissos teóricos que cada método exige. Eunice Durham concorda com esta crítica ao afirmar que ocorreu uma politização crescente dos estudos em ciências sociais, com a preocupação dos pesquisadores em descobrirem uma aplicação imediata e direta dos resultados de sua pesquisa que beneficie a população estudada. Sem deixar de ver como necessária a identificação do pesquisador com seu objeto, porque sem ela é impossível a compreensão “de dentro”, Durham adverte para o risco de se explicar a sociedade através das categorias “nativas”, sem uma análise científica sobre as mesmas e sem uma reflexão teórica e metodológica sobre a postura militante do cientista social.

O que as autoras discutem é o ‘esticar da baladeira’ dos pesquisadores na utilização dos métodos qualitativos, que já permitem, por si só, uma abordagem mais livre em seus percursos metodológicos. Mas nesse contexto, liberdade não é simplesmente um vale tudo. ‘Esticar’ até o ativismo é ultrapassar o jardim científico e pular pelas pedras do deserto. O alucinar do método.

Fazer ciência é protocolizar uma ação sistemática de análise de um objeto, a fim de tentar resolver (ou conhecer mais) a sua natureza, utilizando-se para isso de uma forma de caminhar (epistemologia) para revelar um pouco mais da realidade estudada (ontologia). Não estou querendo dizer aqui que o pesquisador tem que ser isento ao objeto e à coleta de dados - uma defesa quase absoluta dos quantitativistas -, pois não acredito que ele possa ficar neutro durante esse processo. Há uma identificação com o objeto, no intervalo entre repulsa e compaixão, por mais que se tente ser isento, há um interesse mínimo (por isso defendo uma triangulação metodológica). Mas partir dessa identificação e chegar até o limite de querer, com sua pesquisa, resolver imediatamente os problemas nos quais seu estudo paira sobre esse objeto pesquisado, é ser militante. Ou a ciência cria política pública? A afirmação mais correta seria: As teorias e leis, fruto das bases das descobertas científicas - teses, hipóteses e fatos - fornecem o alicerce básico para a formulação de políticas públicas, a partir de qualquer ente externo à ciência.

Vejo isso sendo feito na temática do capitalismo de vigilância ou, na tendência ‘científica’ atual, de quão danosos são os algoritmos de inteligência artificial e o porquê devemos detê-los. Não vou aqui citar estudos nem levantar bibliografia, mas, convido você a pesquisar sobre esses termos: Cosmopolíticas, Plantationceno, Sul Global, Colonialidade, Neocolonialismo, Capitaloceno, Subversão técnica, Ciências especulativas, Coreografias tentaculares, Cartografia destrutiva, Coreografar a mistura, Futuros Contemporâneos [mais aqui]. Estudos científicos sob o capô de ideologias criam cenários no estilo ‘reuniões de movimentos sociais’ camufladas de encontros acadêmicos. É mimético.

A grande maioria desses estudos ensejam por combater, veementemente, a teia algorítmica que se forma em torno de várias áreas do agir humano, que por muitas vezes subordina-o a uma realidade que tende a se desenrolar em um cenário de alta vigilância e controle social, por parte de grandes corporações (ou do estado). Claro que o debate e a crítica é válida. O ponto que considero mais problemático é até onde se pode ir no percurso metodológico ao estudar esses objetos.

Ora, essas questões sobre juízo de fato e de valor não são contemporâneas; Max Weber, no início do séc. XX, já defendia a neutralidade axiológica (ou a neutralidade de valores), que consiste na suspensão do juízo valorativo pessoal (ou juízo prescritivo/normativo) na pesquisa sociológica. Essa visão sobre o fazer científico nas ciências sociais é fruto de um dos debates mais polêmicos da área.

A prática sociológica deve ou não ser engajada? A ciência pode ou não enunciar juízos de valor sobre o real? Ou ainda, ela pode nos dizer o que fazer? [1]

Ao contrário de valorar sobre a maldade dos algoritmos e das bigtechs chupadoras de sangue, defendo a análise dos fatos e propostas para novas resoluções de problemas de pesquisa na área deste ‘capitalismo baseado em dados’ e da modulação ou tentativa de predição comportamental com base nesses dados pessoais. Questões chave nesse âmbito giram em torno das seguintes abordagens: Como auditar os modelos de inteligência artificial? Quais os princípios éticos que deverão ser levados em conta em uma análise sistemática de um algoritmo, antes e depois de ser utilizado em um treinamento? Com isso, é possível regulá-lo em âmbito jurídico? Quais os limites desta regulação? Qual o limite humano aceitável para o uso do parâmetro ‘predição comportamental’ nas instituições da esfera pública/privada? Se for estipulado um limite, como lidar com o determinismo social algorítmico?

Se os juízos valorativos devem ou não se submeter exclusivamente ao âmbito da filosofia moral, da política e do senso comum ainda é uma pergunta em aberto; de um lado, os apoiadores da normalização desses juízos na ciência acreditam que não é possível abster-se de suas paixões na análise do objeto, ou, em outras palavras, que a prática sociológica pode ser ‘engajada’; e do outro, os que defendem uma análise antecipada sobre o plano de pesquisa - para conhecer previamente, e deixar de lado, os aspectos contaminados do pensamento e do discurso social, que podem, a priori ou a posteriori, contaminar as análises - reconhecem que apostar em uma máxima neutralidade valorativa é o melhor caminho epistemológico para o fazer científico.